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Certificação:Necessidade sim, moda não!Filipa Homem Christo
A certificação de saúde pode teoricamente fazer-se de acordo com um de vários referenciais normativos conhecidos. Mas para a certificação do sistema de gestão da qualidade, entendido na sua globalidade, as normas harmonizadas mais conhecidas e populares são sem dúvida as Normas ISO 9000, sobretudo desde a sua revisão no ano 2000. A decisão de usar, ou não, as Normas ISO 9000:2000 na implementação (e posterior certificação) de sistemas de gestão da qualidade em serviços de saúde deve ser sempre ponderada pela direcção máxima do serviço, por forma a poder comunicar com clareza aos colaboradores as suas reais vantagens e evitar custos inúteis e decepções altamente desmotivadoras. Se é certo que as particularidades de um serviço de saúde exigem a sua implementação com redobrado bom- Basicamente, os requisitos de uma Norma de referência (ISO 9000 ou outra) são os mesmos para qualquer serviço de saúde. A sua aplicação é que pode assumir diferentes formas, conforme se trate de um hospital inteiro, de um serviço de cuidados intensivos, de um serviço de imunohemoterapia, de uma unidade de radioterapia, de um centro de saúde com uma gestão moderna e autonomizada, dos serviço de saúde pública ou de um consultório privado. Caberá a cada um fazer uma transposição criteriosa e ponderada para a sua realidade. Todas as unidades prestadoras de serviços de saúde têm de se organizar para garantir aos seus clientes a conformidade dos serviços que prestam e todas elas têm de saber gerir a qualidade. Mas significará isso que tenham todas elas obrigatoriamente que se certificar?
A gestão da qualidade A missão principal de qualquer organização é fornecer aos seus clientes serviços ou produtos que satisfaçam as suas necessidades. Os serviços de saúde não fogem à regra. Para satisfazer os seus clientes é necessário identificar e compreender essas necessidades e saber transformá-las em características do serviço a fornecer. Para que isso aconteça é necessário que várias funções da organização se articulem por forma a assegurar que o serviço prestado esteja conforme com as especificações, critérios ou padrões pré-definidos, para identificar desvios e agir sobre eles e para evitar a sua reocorrência. E porque prevenir é melhor que remediar é preciso criar e gerir um sistema da qualidade. Sistema da qualidade A implementação de um sistema da qualidade parte daquilo que a organização realmente é e do que faz. Não se trata de criar regras dissociadas da actividade normal da organização, impostas de fora para dentro. Trata-se, isso sim, de orientar as decisões e a acção para objectivos determinados, decorrentes da política da qualidade e da monitorização e permanente melhoria do seu desempenho. As normas dos sistemas de gestão da qualidade, ao permitirem uma abordagem sistemática e preventiva de todas as actividades que possam afectar a qualidade, desde a concepção do serviço até à sua prestação ao cliente final, ajudam a organização a disciplinar os seus processos e metodologias de trabalho nas áreas-chave, a reduzir falhas internas e a antever os problemas que possam surgir aquando da prestação do serviço ou da utilização de um produto ou equipamento. É assim fácil compreender que, para qualquer organização, incluindo os serviços de saúde - seja qual for o referencial utilizado - há claras vantagens em ter um sistema formal de qualidade. Enumeremos algumas: - melhor sistematização interna; - maior disciplina de processos; - maior confiança para os clientes; - maior confiança para a gestão; - maior confiança para os colaboradores; - maior confiança para as entidades pagadoras; - maior transparência nas decisões; - menores variações na prestação de serviços; - menores custos de falhas e reclamações; - melhor diálogo com clientes e fornecedores; - melhor manutenção e segurança de equipamentos e instalações; - maior credibilidade externa. Não obstante, importa ter presente que a utilização insensata das normas de sistemas de garantia e gestão da qualidade também traz desvantagens que é preciso acautelar: - considerá-las um fim em si e não um meio de obter a satisfação dos clientes; - provocar uma excessiva burocratização por exagero de detalhe; - criar um sistema desnecessariamente rígido, quando não se introduz no próprio sistema a flexibilidade que um serviço exige. Normalização - a base da qualidade, também na saúde Nos serviços de saúde, a necessidade de implementar sistemas formais de gestão da qualidade é tão premente como em qualquer outro serviço em que seja importante fornecer evidência objectiva de que a qualidade foi alcançada nos níveis desejados, e em que seja importante rastrear os processos utilizados para a sua obtenção. A competência técnica, o brio profissional e as normas de boa-prática já largamente utilizadas são um bom princípio mas, só por si, não garantem a qualidade organizacional nem a conformidade do serviço. É necessário que os procedimentos organizacionais inerentes à gestão da qualidade sejam convenientemente estabelecidos, documentados, compreendidos e mantidos em toda a organização. Há quem advogue que a grande variabilidade e o carácter imprevisível que caracterizam os serviços de saúde representam uma desvantagem para a utilização dos modelos de gestão da qualidade ISO 9000 nestes serviços. Mas é exactamente porque a área de imprevisibilidade é grande que há a necessidade de normalizar o que é repetitivo, rotineiro, comum. É exactamente por isso que há a necessidade de disciplinar processos e definir procedimentos padrão. Porque é a melhor forma de garantir que os colaboradores estão preparadas para responder com segurança, flexibilidade e iguais padrões de qualidade a situações imprevistas e altamente variáveis de cliente para cliente. É esta a base da normalização. ISO 9000 - um referencial credível, também na Saúde Os serviços de saúde estão inseridos num contexto socio-económico onde o impulso para a normalização e para o reconhecimento oficial dos seus sistemas de qualidade através da certificação, corresponde cada vez mais a anseios e desejos dos clientes e não apenas a um mero acto de gestão. A harmonização das práticas organizativas que se obtém com a adopção dos requisitos das Normas ISO 9000, advém do facto de estes requisitos terem sido, num contexto internacional, consistente e repetidamente aplicados, testados e verificados na prática, e de a sua actualização estar assegurada através de um processo de revisão periódica de que a chamada versão 2000 é o mais recente exemplo. Os próprios serviços de saúde, quando na posição de clientes, exigem cada vez mais a certificação dos seus fornecedores pelas Normas ISO 9000, reconhecendo nessa exigência um acréscimo de confiança. Ao fazê-lo vão-se familiarizando com certificados, práticas de controlo e garantia da qualidade, registos normalizados e tratamento de não-conformidades. Na sua qualidade de clientes de empresas certificadas é, por seu lado, exigido aos serviços de saúde uma cada vez maior precisão e rigor na definição das especificações ou características dos serviços ou produtos que pretendem adquirir. Estabelece-se assim um melhor diálogo fornecedor-cliente, o que por sua vez eleva o nível da qualidade de ambas as partes. E o que foi descrito na relação cliente-fornecedor externo deve ser entendido como a relação natural em todos os processos críticos e em todos os processos de suporte de todo e qualquer serviço de saúde. Haverá cada vez mais clientes - quer no sector público, quer no privado - que procuram um serviço de saúde que lhes proporcione a confiança nascida do facto de possuírem um sistema da qualidade normalizado, sujeito a permanente monitorização, sobretudo se esse sistema estiver certificado por um organismo de certificação independente, ele próprio reconhecido ou acreditado. NP EN ISO 9001:2000 A Norma NP EN ISO 9001:2000 requer à organização que identifique todos os seus processos críticos (aqueles que são a essência da sua missão), os processos de suporte ou subprocessos que os sustentam, que descreva a inter relação desses processos (por exemplo a através de fluxogramas) e que evidencie a adopção de uma metodologia controlada e conhecida de todos os intervenientes para realização dos serviços a que esses processos correspondem. Para além de seis procedimentos obrigatoriamente documentados, a extensão da documentação necessária para ilustrar a forma como a organização desenvolve, mede e controla as actividades necessárias à prestação do serviço depende da dimensão e complexidade da unidade de serviços, da maturidade das suas regras de boa prática, da formação e experiência dos seus profissionais e gestores, dos riscos inerentes a uma dada actividade específica e do grau de exigência da política e objectivos da qualidade que forem estabelecidos. Os procedimentos não têm que ser exaustivos, devendo ser mantidos o mais simples possível e deve ser clara a sua razão de existir, isto é: o que se perderia se não existissem. Procedimentos que não indicam exactamente qual o âmbito de aplicação, as responsabilidades, o modus fasciendi, os registos aplicáveis, têm provavelmente muito pouco valor acrescentado. Muitos serviços de saúde dispõem já de normas internas de boa prática e regras que estabelecem como é feita a interface entre as diferentes áreas ou departamentos. Neste caso, trata-se de avaliar o que já existe, de verificar quais as exigências da Norma já razoavelmente cobertas e quais são as que carecem de implementação. Regra geral as práticas da organização já existentes cobrem mais satisfa-toriamente as questões do processo: quem faz, com que faz, como se faz, onde se faz, quando se faz, com quanto se faz, onde e como se mede. De fora ficam as questões nevrálgicas do sistema de gestão da qualidade como sejam: a política entendida como compromisso e guia orientador à luz da qual devem ser revistos todos os objectivos, estratégias e decisões; o controlo de desvios e não-conformidades; as acções correctivas para evitar a recorrência das falhas detectadas e as acções preventivas para impedir o seu aparecimento; as auditorias da qualidade, independentes e objectivas, planeadas por forma a cobrir todos os requisitos de qualidade importantes; o adequado tratamento de reclamações; a revisão do sistema de gestão da qualidade e dos objectivos da qualidade tendo em conta todas as actividades de medição e análise por forma a melhorar sucessivamente os padrões alcançados; a gestão optimizada dos recursos (instalações, pessoas, equipamentos e a sua segurança bem como a protecção do meio ambiente). É tudo isto que a Norma ISO 9000:2000 acaba por cobrir com os seus requisitos distribuídos por quatro grandes áreas, acrescidas estas dos aspectos gerais e documentais do sistema da qualidade: - responsabilidade da direcção; - gestão de recursos; - realização do serviço ou do produto; - medição análise e melhoria. Serão as Normas ISO 9000 sempre a melhor escolha? É tudo isto que um serviço ou instituição de saúde tem de demonstrar ser capaz de dominar em termos de gestão da e para a qualidade para se poder certificar. É por isso que aspectos parcelares da vida de um serviço de saúde não são adequados à certificação ISO 9000. Insistir na aplicação deste referencial normativo a tudo e todos é insensato: em muitos casos é caro, desinteressante e sem valor acrescentado significativo para os clientes principais da organização. Até porque há alternativas. No entanto, a certificação de um serviço que, sem ser independente de toda a restante organização, configura por si só um processo crítico totalmente alinhado com a missão da organização e passível de poder ser autonomizado como um todo é de considerar como a melhor escolha e muitas vezes necessário. A decisão de certificação A decisão de implementar um sistema de gestão da qualidade pelo referencial ISO 9000:2000 num estabelecimento de saúde (público ou privado) pode ser restrita a um serviço com as características acima descritas ou generalizada a toda a organização, sendo que neste como no primeiro caso haverá sempre a adopção de soluções centradas sobre uma abordagem sistémica dos processos que tem muito mais ênfase na versão 2000 da Norma. Há serviços dentro da organização cujas características os tornam mais facilmente adaptáveis aos requisitos normativos, como sejam, por exemplo: a farmácia hospitalar, os exames especiais, a imagiologia, a cirurgia de ambulatório. Há serviços dentro da organização de saúde que estão pressionados a avançar rapidamente para sistemas de garantia da qualidade credíveis por força de directivas comunitárias ou da perigosidade dos seus processos: os serviços de esterilização, os serviços de imunohemoterapia. Há serviços que lidam com áreas muito sensíveis e ao mesmo tempo com custos muito elevados, em que uma intervenção em termos de controlo total de processos é indissociável de um sistema de gestão da qualidade e pode conduzir tendencialmente à certificação: certos serviços oncológicos, serviços de cuidados intensivos. Há finalmente serviços privados em relação aos quais a certificação do sistema de garantia da qualidade poderá representar um importante factor de confiança para os clientes ou seus representantes, para as entidades de saúde pública, para a entidade pagadora, ou para os serviços que com eles estabelecem convenções e acordos de prestação de serviços: centros de fisioterapia, clínicas cirúrgicas, serviços de hemodiálise, consultórios de estomatologia e medicina dentária e protésica, serviços de radiologia e outros meios de diagnóstico, análises clínicas e patologia clínica. Será necessária a certificação dos serviços de saúde? Pode perguntar-se se a certificação é o resultado indispensável de um processo de implementação de um sistema da qualidade bem sucedido. Não o é necessariamente. A certificação consiste no reconhecimento formal da conformidade e da eficácia do sistema de qualidade por uma terceira parte independente. Já vimos que a certificação pode ser exigida pelos clientes - pessoas individuais, companhias de seguros, empresas contratantes de serviços de saúde, outras unidades de saúde privadas ou estatais que pretendem celebrar convenções e aumentar o leque de ofertas aos seus clientes. Pode ser uma necessidade ou exigência regulamentar por força de directivas comunitárias - antevê-se, por exemplo, a necessidade de certificação de serviços centrais de esterilização que produzem dispositivos médicos para clientes externos. Pode, também, ser induzida directamente pela concorrência - os primeiros casos de sucesso de certificação de serviços privados de saúde induzirá a procura de outros processos de certificação. E quanto aos serviços públicos? Será a certificação, tal como aqui foi entendida, necessária ou importante nestes serviços? Para além das várias razões acima apontadas, há uma que prevalece: a necessidade de garantir, perante a comunidade que serve, que um dado serviço de saúde, muito crítico para a saúde pública, gere e controla de forma consistente a conformidade de todos e de cada um dos seus processos e mantém documentada a rastreabilidade de todas as suas decisões, fazendo-o evidenciar por uma entidade credível e totalmente independente. Quando a certificação se baseia numa necessidade claramente identificada e o seu valor acrescentado pode ser medido é uma poderosa alavanca para a melhoria da qualidade das instituições e um motivo de orgulho. Quando é apenas uma moda ou a obediência cega a interesses pouco claros logicamente que não deve ser considerada. Mas privar os serviços de saúde de tão elevado benefício por razões também elas pouco claras, por desconhecimento ou medo infundado é igualmente condenável. Como em tudo, o bom senso é que prevalece. |
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